A Lapa do Bugio é uma cavidade cársica situada nos terrenos da faixa Mesozóica litoral, GPS m=109004 p=162883, a cerca de 500 metros da povoação de Azóia, e 150 metros acima do nível do mar. Foi descoberta por Rafael Alves Monteiro em 16/10/1957, que a denominou por Estação Isabel.
Do ponto de vista espeleológico, trata-se de uma galeria natural, com cerca de 9 metros de comprimento, 8 metros de largura e 2 metros de altura que se desenvolve em calcários do Jurássico, sendo o acesso feito de forma descendente, apresenta formações mas normais para uma Lapa.
Do ponto de vista arqueológico, foi considerada uma Necrópole do Neolítico final e Calcolítico, formada por um átrio exterior, que comunica por uma passagem estreita com a cripta, dado que os materiais recolhidos durante as escavações a que foi sujeita, pelo que se presume ter ficado inviolada durante as épocas posteriores, o que não aconteceu por exemplo com a Lapa do Fumo que teve sempre ocupações que vão desde a pré-história, proto-história, e tempos históricos, utilizada portanto desde os primórdios da humanidade até quase aos nossos dias. (Cardoso et al., 1992; Monteiro et al. 1971).
Escavações e publicações decorreram entre 1957 e 1970 por Rafael Monteiro, Eduardo da Cunha Serrão, Agostinho Isidoro, J. Santos Júnior, Georges Zbyszewski e Octávio da Veiga Ferreira. Em 1957 por Rafael Monteiro e colaboradores do Museu Arqueológico de Sesimbra, as primeiras, nas zonas A e B, tendo sido a última efectuada em 1966/1967, em colaboração com os Serviços Geológicos de Portugal e o Museu Arqueológico de Belém. Foram usados o método da grade e o sistema tridimensional, sendo recuperado valioso espólio, datado entre os meados do terceiro milénio e os primeiros séculos do segundo milénio a.C.
Destacam-se trabalhos, da autoria de: F. Isidoro, sobre o espólio da necrópole datados de 1963 e outro de 1964, Monteiro 1967 e 1971, Cardoso 1992, Soares e Cabral 1994 (Cardoso et al. 1992).
Em 1967, uma amostra de carvão recolhida por Veiga Ferreira de uma das sepulturas do Campaniforme revelou uma datação pelo carbono 14 de 4850± 45 BP 3750-3520 cal BC (GrN-5628). Outra datação partindo de um pedaço de alfinete de cabelo em osso, indicou 4420± 110BP: 3500-2870 cal BC (OxA-5507) (Monteiro et al., 1971; Soares e Cabral, 1984; Cardoso et al., 1992).
O Espólio recolhido nas diferentes campanhas encontra-se distribuído pelo Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade do Porto, Museu dos Serviços Geológicos de Portugal, Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal e o Museu Municipal de Sesimbra.
1. Sílex - Destacam-se micrólitos trapezoidais, pontas de seta pedunculadas e de base côncava e recta, várias lâminas, bem como dois núcleos de quartzo hialino (mineral não existente na região).
2. Cerâmica - Destacam-se vários pedaços de exemplares pertencentes ao tipo Dolménico e ao tipo Campaniforme, semelhantes a outros provenientes da região, Lapa do Fumo e grutas artificiais de Palmela.
3. Osso - Foram recolhidos vários punhais, furadores, cabeças de alfinetes, colares, e destacam-se dois ídolos do tipo Almeriense, raros em Portugal, bem como uma pequena escultura, para adorno em marfim com cerca de 5 cm, representando 2 lagomorfos (um par de coelhos), ligados pelas pernas traseiras.
4. Calcário - Destacam-se, um ídolo cilíndrico com vestígios de ornamentação, tatuagem facial, já muito desgastada, e dois outros belos exemplares de ídolos um do tipo pinha, bolbo de flor de lótus ou flor de palmeira, semelhante aos de Sintra e Cova da Moura (Serrão, 1973) e um outro parecendo uma representação simbólica da intumescência de uma alcachofra.
Estes ídolos poderão ter raízes mediterrâneas e orientais (Cardoso, 1991).
"…símbolos orientais relacionados com a purificação e a renovação da vida, como convinha aos defuntos a quem acompanhavam, como oferendas. A influência oriental é ainda sublinhada pela matéria prima utilizada, tão apreciada, pela mesma altura, para confecção de artefactos funcionalmente idênticos, no Mediterrâneo Oriental" (Cardoso, 1992).
5. Objectos de Culto - É notável a quantidade versus as dimensões da gruta 9 x 6 metros, além das suas características e os materiais em que foram feitos, nomeadamente os Colares de contas em: Calaíte, Anfíbolite, Serpentina, Aragonite, com pendentes em Amazonite, tudo minerais não existentes na região, por exemplo a Calaíte deverá ser de origem persa, (exceptuando-se a Aragonite que existe, por exemplo, em algumas grutas do concelho formando magníficas espeloformas cristalinas), o que deverá pressupor, a existência de trocas comerciais com outros povos.
6. Ídolos Placa em Ardósia - Foram recuperados várias ídolos placa de diferentes dimensões, destacando-se dois, pelas invulgares características dos desenhos representados, que os destacam dos inúmeros exemplares catalogados mundialmente, Nomeadamente na base de dados ESPRIT, organizada pela arqueóloga americana Katina Lillios, onde estão catalogadas, com imagens e bibliografia, mais de 4 mil placas, incluindo os exemplares da Lapa do Bugio, até agora descobertas na Península Ibérica, provenientes de uma área de cerca de 350 x 250 quilómetros.
Relativamente aos dois exemplares de destaque vamos tecer algumas notas curiosas, na tentativa de decifrar os enigmas que eles representam neste momento, já que como diz Katina
"... Acredito que possa ser um tipo de escrita sem palavras. Não é um sistema de escrita, mas usa indicações para a memória, como ocorre em povos sem escrita .... Falta uma Pedra de Roseta..."
Esta peça (fig. 1) em cuja gravação se notam várias faixas horizontais decoradas e encimadas por dois círculos. Referimos, uma interpretação possível do seu simbolismo, desenvolvida por Rafael Monteiro e divulgada no jornal D.P. de 24/7/1958, segundo o qual, este tipo de grafismo representaria a mumificação do indivíduo sepultado e logicamente envolto em ligaduras, relembrando a muito ancestral tradição, segundo a qual as almas sairiam pela boca se olharmos de novo o ídolo em causa, verificaremos a ausência da representação da boca, podemos no entanto verificar as seguintes representações simbólicas: de baixo para cima, faixas horizontais decoradas (as ligaduras), no topo dois círculos (os olhos), na região central destes, a barra vertical (o nariz), na região superior duas barras curvas (as arcadas supraciliares), no verso da placa só as faixas horizontais decoradas (as ligaduras). Tudo isto com a total ausência da representação da boca. Curiosamente o mesmo se verifica em muitas outras placas ídolo encontradas na vizinha Espanha.
Mas se voltarmos a olhar a mesma placa, noutra perspectiva, e pensarmos na representação simplificada dos ídolos almerienses, que tradicionalmente se designam como ídolos “chatos” e que Almagro Gorbea classificou, como ídolos “cruciformes” (Almagro Gorbea, 1973), por exemplo os do complexo dos Perdigões, é fácil admitir que a sua representação, seja feita por três triângulos. Repare-se agora na parte central da referida placa.
“… traz em si quatro representações do mesmo tipo da anterior (placa da fig.2) é o que me parece, também, fora de dúvida” (Cardoso, 1992).
Esta peça (fig.2) em cuja gravação se nota a presença interior do desenho de um ídolo do tipo Almeriense, foi descoberta em 1967, entre as sepulturas 8,9 e 10. Trata-se de um placa de xisto argiloso amarelado, possuindo apenas gravação numa das faces, porém observando-a, veremos que contem no exterior, ocupando dois terços da superfície da placa, as características típicas do desenho standard das placas ídolo do tipo dolménico da península, distinguindo-se a cabeça, o corpo e a base preenchidas por faixas laterais e triângulos lisos e reticulados, no espaço central encontramos a gravação de um segundo ídolo tipicamente do estilo dos ídolos da cultura de Almeria, note-se a cabeça representada por um triangulo invertido e o corpo formado por dois triângulos unidos pelo vértice, surgem ainda dois traços pendentes da linha dos ombros, representando os braços e nas extremidades é possível observar várias incisões que possivelmente representam os dedos, o que a torna especial (O. da Veiga Ferreira, 1964).
Levando-nos a concluir que ela representa uma ligação efectiva entre duas culturas distintas,
" o chamado ídolo Almeriense é o que maiores afinidades apresenta com os ídolos de tipo oriental, opinião esta a reforçar outras provas da existência de relações, já nessas épocas remotas, entre a Península Ibérica e o Mediterrâneo Oriental " (Monteiro et al. 1964).
Pelo que se pressupõem de uma importância fundamental, o estudo desta placa que representa o elo de ligação entre as diferentes culturas, já que o número de ídolos do tipo Almeriense, encontrados no território nacional é diminuto, sendo o mesmo estranho à cultura neolítica do Sul de Portugal, que pelos achados registados, se revela essencialmente Dolménica. Note-se a presença de colares de contas de Calaíte, os pentes de marfim, os recortes antropomórficos de várias placas de xisto, são indícios evidentes, de ligações às civilizações do Vale do Nilo.
Pode-se concluir que esta figura antropomórfica representada, neste exemplar da placa da Lapa do Bugio, nada tem a ver com os conceitos religiosos padrão dos povos agricultores, autóctones e a mesma só poderá representar influência de populações recém-chegadas, originárias do sudoeste Espanhol, Mediterrâneo Oriental, norte de África e Próximo Oriente, em busca do cobre, atraídas pelos recursos naturais. Introduzindo novos conceitos de ordem religiosa, representados por essa figurinha antropomórfica, revolucionária nas placas ídolo da época.
Restos Osteológicos humanos - Foram descobertas 10 sepulturas individualizadas por pequenas lajes calcárias, excepto as números 2 e 6 que eram duplas, um ossário, pensa-se resultante da reutilização da necrópole do Neolítico Final e um esconderijo, (Figura 1; Monteiro et al., 1971) de onde foram, recolhidos alguns exemplares, que permaneciam á alguns anos na estante IV do Museu Arqueológico de Sesimbra (no Castelo), tal como outros aguardando investigação antropológica. Actualmente o espólio ósseo humano encontra-se depositado em dois locais distintos: Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade do Porto, antigo Instituto Mendes Corrêa, e o Museu Municipal de Sesimbra.
Agostinho Isidoro teve oportunidade de estudar os dois conjuntos, diz no seu trabalho de 1964, que o número mínimo de indivíduos seria de 28 dos quais: 20 adultos referenciados pelas mandíbulas e 8 crianças referenciadas pelos fémures, admitindo a possibilidade de o NMI ser superior devido ao elevado número de ossos bastante fragmentados, que não foram incluídos no estudo.
O espólio ósseo e dentário actualmente depositado no Museu de Sesimbra, composto por 105 peças ósseas e odontológicas, foi alvo de novo estudo por Ana Maria Silva em 1998 e posteriormente por Rui Marques, os resultados foram apresentados em congressos e publicados (Marques, 2005a; Silva e Marques, 2006; Silva e Wasterlain, 2008). Destes trabalhos de investigação concluíram que o NMI é de 16 indivíduos, sendo 15 adultos e um adolescente entre os 6 e 12 anos, referenciados pelos restos mandibulares.
Na primeira publicação sobre a Lapa do Bugio, Outubro de 1957, os autores descrevem um achado peculiar, que passo a transcrever
“Referir-nos-emos, desde já, ao aparecimento de uma vértebra (um atlas) na qual está embebida uma ponta de seta de sílex “ (Monteiro e Serrão, 1959: 424).
A referida peça foi analisada e descrita numa comunicação (An arrowhead injury in a Neolithic human axis from the natural cave of Lapa do Bugio - ANTHROPOLOGICAL SCIENCE Vol. 118(3), 185–189, 2010) por A.M. Silva e R. Marques, que confirmaram a presença da ponta de seta, com 36,6 mm de comprimento e largura máxima de 13,7 mm, que penetrou no corpo da segunda vértebra cervical, de um humano adulto, de sexo e idade à morte indeterminados, pois a peça foi recolhida à superfície da gruta sendo portanto impossível relacioná-la com os restantes ossos existentes.
Os exames com Raio X e TAC, confirmaram que a ponta de seta entrou pelas costas, num ângulo de cerca de 90º, possivelmente quando o indivíduo corria em fuga, ou resultante de mero acidente. Não se encontraram casos de situações traumáticas como esta nos outros ossos estudados. Aliás em Portugal apenas se conhece um caso de uma lesão semelhante num osso frontal de um adulto, descoberto no Dólmen de Ansião (Silva, 2002, 2003a).
Texto: Orlando Pinto, 2014
Minuta da Planta da Lapa do Bugio 1966 feita por O.Veiga Ferreira e R.Monteiro
a) Quatro Lâminas de Sílex
b) Pontas de Setas Pedunculadas de Sílex
c) Pontas de Setas Côncavas de Sílex
a) Colar de contas de Calaíte com Pendente de Amazonite
b) Colar de contas de Madeira
c) Adorno com par de coelhos em osso
Ídolo cilindro de calcário com representação de tatuagem facial, proveniente da sepultura 9 da necrópole da Lapa do Bugio
Ídolos pinha e alcachofra de calcário
Objecto de Adorno
Esboço feito por O.da Veiga Ferreira no seu caderno de campo
Placas de Xisto Gravadas da Lapa do Bugio
Museu de Arqueologia e Etnografia de Setúbal
Isidoro 1968
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Isidoro 1968
Museu Municipal de Sesimbra
Museu de Arqueologia e Etnografia de Setúbal
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Isidoro 1968
Isidoro 1968
Isidoro 1968
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Museu Municipal de Sesimbra
Monteiro and Cunha Serrão 1959
Museu Municipal de Sesimbra
Isidoro 1968
Origem das fotografias: O Tempo do Risco - Carta Arqueológica de Sesimbra, 2009 ; museu-maeds.org/pecas ; fotoarchaeology.blogspot.pt ; R.J.Rodrigues, CM Sesimbra ; Base de dados ESPRIT ; O. da Veiga Ferreira (1917-1997): Sua vida e obra científica, J. L. Cardoso, 2008
CNS: 976 - 2961
Datações do Sítio - Neolítico - O. da Veiga Ferreira, Sepultura Campaniforme, Calcolítico, C14, Idade BP:4850+-45,Calibração 1: 3691-3549 cal BC, Calibração 2: 3707-3530 cal BC.
Bibliografia: O Tempo do Risco - Carta Arqueológica de Sesimbra, M. Calado et al, 2009; A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem - Ricardo Soares, 2012; Portal do Arqueólogo - arqueologia.igespar.pt/; Carta Arqueológica de Sesimbra - desde o Paleolítico antigo até 1200 d.C., C. Serrão, 1973; Rafael Monteiro e E. da Cunha Serrão, Estação Isabel (Necróplole pré-histórica da Azoia), Actas e Mem. do I Congresso Nacional de Arqueologia, Lisboa, 1959.; R. Monteiro, G. Zebyszewski e o. da Veiga Ferreira, Uma notável placa de xisto encontrada na Lapa do Bugio (Azoia), Revista de Guimarães - 77 (3-4) Jun.- Dez. 1967; Agostinho F. Isidoro, A lapa do Bugio (Necrópole pré-histórica da Azoia), Trab. de Antrop. e Etnol., vol. XIX, fasc. 1, Porto 1963; Agostinho F. Isidoro, Estudo do Espólio antroplógico da gruta neo-eneolítica do Bugio (Sesimbra). Trab. de Antrop. e Etnol., vol. XIX, fasc. 3-4, Porto 1964; O. da Veiga Ferreira, Manifestações de Arte no mobiliário funerário do Eneolítico de Portugal, Revista de Guimarães - 72 (3-4) Jun.- Dez. 1962; Base de dados ESPRIT; Guia do Museu Arqueológico de Sesimbra; Portal do Arqueólogo - arqueologia.igespar.pt; Arnal, Jean; A Propósito das placas de xisto gravadas do Sul da Península Ibérica, Revista de Guimarães - 72 (3-4) Jun.- Dez. Arnal, Jean; Gros, André-Charles, 1962; Homenagem a Octávio da Veiga Ferreira Estudos Arqueológicos de Oeiras, J.Luís Cardoso, 2008; Actas do Encontro sobre Arqueologia da Arrábida - Na Arrábida, do Neolítico Antigo ao Bronze Final, J.Luís Cardoso, 1992; An arrowhead injury in a Neolithic human axis from the natural cave of Lapa do Bugio - ANTHROPOLOGICAL SCIENCE Vol. 118(3), 185–189, A.M. Silva e R. Marques, 2010